MARIA DO PILAR
Tive experiências inesquecíveis na infância, e embora nem todas felizes, aprendi a recorda-las com o carinho que merecem, pela importância que tiveram na minha formação e desenvolvimento emocional. Com a maturidade, fui adquirindo nova percepção das coisas, e os fatos embora imutáveis, assumiram novos contornos com o passar do tempo.
Eu estudei desde o jardim de infância ate a quinta serie, no Colégio Santa Teresinha do Menino Jesus, colégio de freiras, que nos anos 60 aceitava apenas meninas. Pertencendo a uma família numerosa, éramos 8 irmãos (5 meninos, 3 meninas), minha mãe se desdobrava para cuidar sozinha de todos nos, razão pela qual eu e minhas irmãs não tivemos longas trancas nos cabelos entremeadas com fitas, ou qualquer charme que as meninas da época ostentavam. Éramos todos levados a um salão no bairro, onde a cabeleireira nos cortava os cabelos “a la Joãozinho” ou seja, bem curtinho para poupar tempo a minha mãe. Eu odiava, mas não tinha escolha. Todos os anos havia apresentações na escola em datas comemorativas do calendário Católico, como a Aparição da Virgem de Fátima. Eu sempre era escalada para fazer parte do grupo, não pelo meu talento, mas por ser uma das poucas com cabelos curtos o suficiente para ser o Francisco, o irmão da Jacinta. Eu queria ser a Virgem que aparecia, linda, cabelos longos e soltos, adorada por todos, mas eu era o Francisco, e precisava sempre aturar as gozações das coleguinhas, que ainda pequeninas, ja dominavam a arte do bullying. Quando todos começavam a esquecer do meu papel de Francisco, eis que chegava o mês de junho, e quadrilhas eram organizadas pelas Irmãs, para se apresentarem no dia da festa de São João. A revolta era geral, pois nenhuma das meninas queria ser o par masculino, se vestir de menino e ainda pintar barba e bigode, mas as Irmãs escolhiam os meninos e pronto. Eu, apesar de ser a primeira a ser escolhida como par masculino, me conformava ao ver que muitas outras teriam que prender seus belos cabelos e se vestirem de meninos como eu. Mas, mal pude curtir minha vingança, que outra bomba me foi jogada as mãos: Eu não só fora convocada para ser o menino, como ainda seria o par da Maria do Pilar! Maria do Pilar era uma coleguinha com síndrome de Down, de longos cabelos louros, e óculos fundo de garrafa. Eu não queria ser menino, queria vestir lindos vestidos para a quadrilha! Eu não queria ser o par da Maria do Pilar, afinal, ela não conseguia decorar a dança, falava mal, eu quase não a compreendia, as vezes babava, e eu sentia repulsa por sua figura. Seus pais eram idosos, a primeira vista pareciam ser seus avos, mas nunca soube nem me interessava saber. Esse casal frequentemente se postava na porta da nossa classe, na hora da saída, com pacotinhos cheios de doces (balas, dadinhos, doce de leite, etc) para cada uma de nos, que pegávamos e saiamos comendo, felizes da vida, sem sequer dizer um "muito obrigada". Era a sua maneira de nos implorar que aceitássemos a sua filha, mas para mim não atenuava em nada a revolta de ter que ser o par masculino de uma menina retardada. (Era assim que definíamos as crianças com síndrome de Down). O que eu sabia e que continuaria sujeita a bullying,e por falta de definição para esse comportamento abusivo, eu só reclamava que as meninas eram chatas, e muitas vezes eu chorava não querendo ir para escola, em vão e claro.
Foram 3 ou 4 anos assim, e não havia solução, pois naquele tempo não se questionava decisões de pais e/ou professores. A pobre Maria do Pilar jamais foi totalmente incluída, e eu passei a detestar festa junina. Por muito tempo me perguntei porque a mãe da Maria do Pilar a teria colocado em escola com crianças normais, porque não a matriculava em escolas especiais? Ruim para ela e ruim para as outras que não se sentiam confortáveis ao seu lado. Também culpava a minha mãe por cortar meus cabelos tão curtos, me expondo a essas situações constrangedoras.
E foi apenas quando me tornei mãe, que eu comecei a calçar os sapatos da mãe da Maria do Pilar e entendi finalmente porque ela nos brindava com doces e mimos, não economizando seu dinheiro, tempo e amor pela filha. Entendi também as razoes e as vantagens de não ter sido mimada pelos meus pais como eu tanto desejava ter sido. O que a época era meu trauma e grande motivo de revolta, hoje evidencia-se como o aprendizado mais completo e intenso de superação, humildade, resignação e compreensão. Minha mãe me jogou aos leões, e eu tive que vence-los. Meu pai ao ouvir minhas queixas me dizia sabiamente: ah, vá vá! Você ainda vai aprender a ser gente! A mãe da Maria do Pilar me colocou um espelho na cara, para eu enxergar a menina fraca, mesquinha, egoísta e fútil que estava tentando se instalar em mim. As freiras não acreditavam em traumas, mas na fé, na hierarquia e respeito. O resto era blá blá blá
Como agradecer a essas figuras fundamentais na minha formação, onde definitivamente os fins justificaram os meios? E como não agradecer a mim mesma, por decidir não me tornar refém dos traumas de infância, mas ao contrario, usa-los para evoluir e me fortificar? Maria do Pilar, não sei se ainda vive, mas ainda me ensina e orienta. Inesquecível.
Texto e acervo de: Elaine De Lazzari
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